PLC 122/06 e os evangélicos

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Tatiane Pires

O projeto de lei nº 122/2006 propõe alterações na lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor[1], no § 3º do art. 140 do Código Penal[2] e no art. 5º da Consolidação das Leis do Trabalho[3]. Essas alterações visam tornar crime o preconceito contra homossexuais.

Uma vez que o PL 122/06 voltará a ser discutido na Comissão de Direitos Humanos, tratei de pesquisar para construir minha opinião sobre o projeto. Antes de ir ao tema sobre o qual me proponho a escrever, é necessário definir fé, religião e Estado.

A enquanto confiança em alguém, em alguma coisa ou a crença nos dogmas de uma religião é uma decisão pessoal.

O dicionário etimológico online define religião como “respeito pelo que se considera sagrado, reverência a divindades”[4]. Também podemos considerar a religião como um sistema cultural que estabelece símbolos e valores[5].

Estado é a ordem jurídica de toda uma sociedade e os aparelhos de sua execução.[6]

Uma das teses defendidas por evangélicos contra o PL 122/06 é que não se pode equiparar designação étnica (isto é, raça) com identificação de gênero — pois não se pode escolher a primeira, ao passo que consideram a segunda uma opção.

Não irei discutir se a identificação de gênero é ou não uma opção. O fato é que a mesma lei que criminaliza o preconteito de ordem étnica, também o faz com o preconceito religioso. Basta consultar o art. 1º da Lei 7.716/89:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Alô, evangélicos?! A lei atual equipara o preconceito étnico ao preconceito religioso. E religião é, sim, uma opção. Por que os homossexuais não deveriam ter amparo legal contra o preconceito da nossa sociedade? O PL 122/06 propõe a alteração desse artigo para:

“Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.”(NR)

Há também emenda do senador Wilson Matos que propõe supressão dos termos “orientação sexual e identidade de gênero”. Ele argumenta que “os termos orientação sexual e identidade de gênero sofrem de uma fragilidade conceitual, pois foram
impostos sem muita discussão. Falta, certamente, determinação ao conceito. Falta-lhes definição clara, para melhor compreensão do texto legal.”
[7]

A proposta de nova redação para o art. 20 da Lei 7.716/89 causa preocupação dos evangélicos, pois eles vêem uma tentativa de impedir a propagação dos seus princípios por meio da identificação de “prática … de ordem … filosófica” entre as ações listadas ao adicionar o § 5º.

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero:
§ 5º O disposto neste artigo envolve a prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica.”(NR)

É de conhecimento geral que os dogmas cristãos são contra a conduta homossexual. Identifico aqui como dogmas cristãos aqueles que se fundamentam em textos Bíblicos. Não discutirei teologia; por outro lado, essa não deixa de ser uma questão filosófica[8], uma vez que as religiões são sistemas culturais.

Formadores de opinião no meio evangélico, pelo menos entre os que pude observar, utilizam-se desse argumento para posicionar-se contrariamente ao PL 122/06 como todo, em vez de propor aos legisladores um debate em torno deste ponto. Penso que a comunidade LGBT não considera a pregação do evangelho um ato que expresse preconceito de ordem filosófica. A atitude preconceituosa é que não pode se esconder sob falas supostamente religiosas.

Também causam reações os acréscimos ao art. 8º da Lei 7.716/89:

“Art. 8º-A Impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público, em virtude das características previstas no art. 1º desta Lei:
Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”
“Art. 8º-B Proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs:
Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”

Os evangélicos afirmam que, com esses acréscimos ao texto legal, homossexuais poderiam expressar afetividade nas igrejas, visto que são espaços abertos ao público.

O objetivo da comunidade LGBT é ter amparo legal contra o preconceito. Em cinemas, restaurantes, bares e outros locais, casais heterossexuais podem manifestar afetividade, por que não poderiam os homossexuais? Em relação ao art. 7º do PL 122/06, foi proposta, pelo senador Wilson Matos, emenda suprimindo “locais privados”.[9]

Note-se que o texto proposto é claro ao definir “sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs”. Nas igrejas, até onde tenho conhecimento, a manifestação de afetividade entre os casais heterossexuais é moderada pela comunidade. Como se trata de locais onde há valores religiosos em questão, também acredito que esse é um ponto que deve ser debatido pelos legisladores.

Finalizo esclarecendo que falei dos evangélicos fazendo uso da terceira pessoa nesse texto, porque o fato de eu ser evangélica não me faz concordar com o preconceito que existe na sociedade como todo e inclusive em nosso meio. O Estado existe para o conjunto da sociedade, não para um grupo em detrimento de outros. Por isso acredito ser necessária a criminalização do preconceito contra os homossexuais, assim como já é crime o preconceito étnico, religioso ou de procedência nacional.

É preciso que cada um se torne sujeito na formação da própria opinião, em vez de delegar essa responsabilidade a terceiros de forma consciente ou não. Para que isso ocorra, é preciso pesquisa, reflexão, vontade de mudar os próprios conceitos e respeito a opiniões contrárias.

Referências:
[1] Lei Nº 7.716/1989
[2] Decreto-Lei nº 2.848/1940
[3] Decreto-Lei nº 5.452/1943
[4] www.etymonline.com/index.php?term=religion
[5] Definição proposta pelo antropologista Clifford Geertz (en.wikipedia.org/wiki/Religion)
[6] Conforme Quentin Skinner na introdução do livro “Inovação política e mudança conceitual”. Ball, T; Farr, J.; and Hanson, R.L.. Political Innovation and Conceptual Change. Cambridge University Press.
[7] EMENDA Nº 06 – CDH (ao PLC nº 122, de 2006)
[8] Filosofia (do grego, “amor à sabedoria”) é o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem. (pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia)
[9] EMENDA Nº 04 – CDH (ao PLC nº 122, de 2006)

Atualização (17/02/11)

Encontrei no blog Diversidade Católica dois textos interessantes também na perspectiva de repensar o que significam cristianismo e “a mensagem inclusiva de Jesus de Nazaré como o Cristo de todos”. Reproduzo aqui alguns trechos:

No horizonte cristão esses eventos também ocorrem e põem a perder a mensagem inclusiva de Jesus de Nazaré como o Cristo de todos, que tem mantido seus braços abertos para todos. Como fonte inesgotável do amor, que faz novas todas as coisas, tem renovado em nós a esperança da mensagem inclusiva cristianismo. Movido pelo Espírito que sopra onde quer, Ele nos leva pela estrada do acolhimento da diversidade presente na criação, fazendo de nós sementes e semeadores do Reino de Deus.

A militância de Jesus de Nazaré, o Cristo de todos

em que medida o movimento de inclusão dos tradicionalmente excluídos (inclusive em virtude de sua orientação sexual, mas não só eles) nos diferentes segmentos do cristianismo não poderia contribuir para a passagem humana de uma vivência agrilhoante da Lei para a libertação proclamada pela Boa Nova, a Lei do Amor?

Cristianismo: uma religião ou a saída da religião?

Atualização (11/03/11)
Reproduzo a seguir alguns trechos da entrevista da senadora Marta Suplicy ao jornal O Globo que encontrei no blog da Conceição Oliveria (@maria_fro).

Com a nova lei, o padre seria obrigado a celebrar um casamento entre homossexuais, sob pena de ser tachado de homofóbico?

MARTA: Claro que não. Há uma ressalva que preserva a liberdade de culto, inclusive a liberdade de poder dizer que, na interpretação daquela igreja, é um pecado. Tem uma cláusula acrescentada pela ex-senadora Fátima Cleide (que relatou o projeto no ano passado) que vai proteger o que se fala dentro do culto, desde que não seja ofensivo.

Já há uma reação forte contra o desarquivamento do projeto. Como a senhora vai responder a isso?

MARTA: O projeto vai tramitar e vamos fazer as discussões. Mas é importante ver que a homofobia não é uma briga de bar. Quem vê aquele espancamento na Avenida Paulista vê que nós não podemos admitir punições e sanções iguais à de uma pessoa que bate em outra (crime de lesão corporal). Não é a mesma coisa. Hoje, não há proteção específica na legislação federal contra discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Então, nós abandonamos 10% da população.

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